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Muito Antes da Cidade: Os Primeiros Habitantes de Serra Negra do Norte

Por Túlio Dantas   Terça-Feira, 1 de Julho de 2025

Antes que o nome Serra Negra do Norte existisse, antes mesmo que a devoção de Manoel Pereira Monteiro fincasse neste solo os alicerces de nossa primeira igreja, o território que hoje chamamos de lar já era um lugar de vida, cultura e espiritualidade. Este chão, seco e, ao mesmo tempo, fértil de memória, foi ocupado durante milênios por grupos humanos que desenvolveram maneiras engenhosas de viver no sertão e de se conectar profundamente com a terra.

A história dos primeiros habitantes do Seridó é muito anterior à chegada dos colonizadores. Estudos arqueológicos, vestígios materiais, tradição oral e registros históricos indicam que Serra Negra do Norte fazia parte de uma vasta rede de ocupação indígena, composta por povos que dominavam o ambiente semiárido e deixaram marcas que ainda hoje resistem. Nesta matéria, vamos entender quem eram esses povos, como viviam e de que forma sua memória continua presente na identidade da nossa cidade.

Presença humana milenar no Seridó

A ocupação humana no sertão do Rio Grande do Norte remonta a milhares de anos. Sítios arqueológicos em várias cidades da região – como Parelhas, Carnaúba dos Dantas, Acari, Caicó e Jardim do Seridó – apresentam evidências da presença humana desde aproximadamente 10 mil anos atrás. Esses registros incluem, artefatos de pedra, fragmentos cerâmicos e, principalmente, vestígios de arte rupestre.

Essa arte, em forma de pinturas ou gravuras sobre rochas, revela aspectos simbólicos e espirituais dos povos que ali viveram. São cenas de caça, danças, figuras humanas estilizadas, animais da caatinga e formas geométricas que instigam até hoje pesquisadores. A tradição rupestre da região é reconhecida pela arqueologia como pertencente à chamada Tradição Nordeste, mais especificamente à Subtradição Seridó, que abrange parte do semiárido nordestino e demonstra uma ocupação estável e significativa por milhares de anos.

Esses registros não são apenas marcas artísticas, mas evidências de formas de organização social, rotas de mobilidade, práticas ritualísticas e conhecimento profundo do ambiente. A presença junto a fontes de água, como riachos e afloramentos rochosos, indica que esses povos sabiam onde se estabelecer para garantir sua sobrevivência, mesmo diante das adversidades climáticas do semiárido.

A terra dos Cariris, Pegas e Sucurus

Na época da chegada dos colonizadores europeus, nos séculos XVII e XVIII, a região era habitada por diversos grupos indígenas, com destaque para os Cariris, Pegas e Sucurus. Esses povos eram classificados pelos portugueses como “tapuias” – termo que originalmente significava “inimigo” ou “não aliado”, utilizado de forma genérica para todas as etnias do interior que não pertenciam ao tronco tupi-guarani.

Os povos tapuias do Seridó integravam a vasta família dos Tarairiús, que dominavam boa parte do interior nordestino. Eles se organizavam em pequenas comunidades seminômades, mantendo relações com a terra baseadas na caça, coleta, pesca e, em algumas áreas, práticas agrícolas adaptadas ao regime de chuvas esporádicas.

Cada grupo possuía seus próprios territórios e estabelecia relações de aliança, comércio ou conflito entre si. Os Cariris, por exemplo, eram conhecidos por sua resistência e complexidade social. Já os Pegas e os Sucurus dominavam áreas ao redor dos rios e serras, onde encontravam condições favoráveis à sobrevivência e ao cultivo de alimentos. A memória desses grupos ainda pode ser percebida em nomes de rios, serras e localidades que mantêm registros linguísticos dessa origem.

A religiosidade e a relação espiritual com a natureza também eram aspectos marcantes desses povos. Embora a maior parte do conhecimento tenha se perdido devido ao impacto da colonização, é sabido que as serras, pedras, fontes e árvores eram muitas vezes consideradas sagradas, usadas como locais de rituais e marcadas por inscrições que hoje compõem o acervo arqueológico da região.

Adaptação à caatinga: o saber ancestral

Longe de ser um bioma hostil, a caatinga era para esses povos um território de recursos e espiritualidade. O conhecimento sobre plantas medicinais, alimentos nativos, ciclos das chuvas e fauna silvestre era transmitido oralmente entre gerações. Esses saberes ancestrais garantiram a sobrevivência de comunidades inteiras mesmo em longos períodos de estiagem.

A coleta de frutos como o umbu, o uso do mandacaru e do xique-xique para alimentação e hidratação, e a pesca em açudes naturais temporários são exemplos de técnicas que sobreviveram ao tempo. Algumas dessas práticas continuam sendo usadas pelos serra-negrenses até hoje, ainda que muitas vezes sem a consciência de sua origem indígena.

A organização social desses povos envolvia lideranças respeitadas, formas coletivas de tomada de decisão, partilha de recursos e cuidado com os mais velhos e crianças. Essas estruturas, embora enfraquecidas com a colonização, deixaram rastros no modo de vida rural, onde ainda se percebe um forte senso de coletividade e reciprocidade.

Os vestígios do Abernal

Um dos testemunhos mais importantes da presença indígena em Serra Negra do Norte está localizado na zona rural do município: o Sítio Arqueológico Abernal. Descoberto em 1961 e posteriormente estudado pelo IPHAN, o Abernal apresenta um conjunto significativo de gravuras rupestres gravadas em lajedos graníticos.

As formas encontradas – traços lineares, círculos, espirais e figuras abstratas – são semelhantes às de outros sítios do Nordeste, mas com características próprias que reforçam a singularidade da região. Acredita-se que essas inscrições tenham entre 1.500 e 3.000 anos de antiguidade, o que as torna testemunhos de uma ocupação contínua e culturalmente ativa.

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Fotos: Eulália Dantas/2025

O Abernal, por sua vez, não pode ser interpretado apenas como um registro estático. Ele representa uma porta de entrada para o passado profundo do município. A presença das gravuras em locais estratégicos, próximos a fontes de água e pontos de observação do território, indica que o local provavelmente era usado para práticas rituais, ensino de tradições orais e celebrações coletivas.

Em 2011, o sítio foi selecionado pelo IPHAN para integrar um projeto-piloto de socialização do patrimônio arqueológico no interior do Rio Grande do Norte. 

A guerra que tentou apagar a memória

A chegada dos colonizadores portugueses alterou drasticamente o cenário do Seridó. A partir do final do século XVII, começaram as chamadas “entradas” – expedições armadas que visavam explorar e ocupar o interior nordestino. Isso levou a uma série de conflitos violentos entre os povos indígenas e os europeus, culminando na chamada Guerra dos Bárbaros, ou Confederação dos Cariris, entre 1683 e 1713.

Essa guerra, embora pouco conhecida, foi um dos maiores movimentos de resistência indígena do Brasil colonial. Envolveu dezenas de etnias, em várias regiões do Nordeste, inclusive o Seridó. Os confrontos eram brutais, com aldeias destruídas, populações inteiras dizimadas e a cultura indígena sendo sistematicamente atacada.

Em resposta à resistência indígena, a Coroa Portuguesa enviou tropas comandadas por bandeirantes experientes, como Domingos Jorge Velho, cuja missão era reprimir os levantes. Em poucos anos, as populações indígenas do Seridó foram reduzidas drasticamente. Muitas foram mortas, outras escravizadas, e as que sobreviveram foram forçadas a viver em aldeamentos religiosos, onde perderam o direito à sua língua, rituais e organização tradicional.

As terras antes ocupadas pelos Cariris, Pegas e Sucurus foram incorporadas ao sistema de sesmarias e doadas a famílias de colonizadores. A partir daí, surgem os primeiros núcleos que dariam origem a povoados como Serra Negra do Norte. A fundação oficial da cidade, em 1735, ocorre dentro desse contexto de substituição forçada da presença indígena pela estrutura colonial.

Resistência e legado no cotidiano

Apesar de toda a violência, a presença indígena não foi completamente apagada. Ela sobreviveu, muitas vezes de forma silenciosa, no corpo e na cultura da população sertaneja. Estudos recentes apontam que diversos registros paroquiais do século XVIII e XIX indicam batismos e casamentos de pessoas identificadas como “índios”, “caboclos” ou “mestiços” em freguesias do Seridó. Em Serra Negra do Norte, é possível que muitas famílias guardem em sua ancestralidade essa origem, mesmo sem plena consciência disso.

A cultura local também traz traços dessa herança. O uso de ervas medicinais, os rituais populares de cura, a culinária à base de mandioca e milho, os utensílios de palha e barro – tudo isso são fragmentos de uma herança indígena que se mantém viva.

Até mesmo o vocabulário cotidiano carrega palavras de origem indígena: caatinga, mandacaru, xique-xique, jacaré, cuité, entre tantas outras. A língua portuguesa falada no sertão é um mosaico construído também por vozes indígenas, mesmo que nem sempre se reconheça isso de forma explícita.

A importância de reconhecer e preservar

Conhecer a verdadeira história de Serra Negra do Norte é um passo essencial para a valorização de sua identidade. A memória dos povos indígenas não é um detalhe perdido no tempo, mas uma parte estrutural do que somos enquanto município, território e povo. A valorização da herança indígena local é uma ferramenta de educação, de inclusão e de desenvolvimento. O Sítio Abernal, os nomes ancestrais, os saberes populares e as práticas do cotidiano são testemunhos vivos que merecem ser respeitados, protegidos e celebrados.

Porque antes do nome, já existia a terra. E nesta terra, os primeiros habitantes deixaram suas pegadas. Em pedra, em sangue e em memória.

 

Referências Bibliográficas

  • ABREU, Capistrano de. Capítulos de História Colonial. Brasília: UnB, 1948.
  • CASCUDO, Luís da Câmara. Geografia dos Mitos Brasileiros. Rio de Janeiro: José Olympio, 1956.
  • BEZERRA, José Augusto. História do Rio Grande do Norte. Natal: EdUFRN, 2010.
  • MONTEIRO, John M. Negros da Terra: Índios e Bandeirantes nas origens de São Paulo. São Paulo: Companhia das Letras, 1994.
  • MELO, Veríssimo de. Tradições Populares do Rio Grande do Norte. Natal: Fundação José Augusto, 1978.
  • PROUS, André. Arqueologia Brasileira. Brasília: Ed. UnB, 1992.
  • MACÊDO, Helder. A Guerra dos Bárbaros e os Índios do Seridó. Natal: UFRN, 2008.
  • Relatórios do IPHAN sobre o Sítio Arqueológico Abernal (2011–2014).
  • Relatórios do Projeto Geoparque Seridó, UFRN/UERN, 2022.
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